Privilégio da minoria, o capitalismo é impensável sem a cumplicidade ativa da sociedade. É forçosamente uma realidade da ordem social, até mesmo uma realidade da ordem política; uma realidade da civilização. Pois e necessário que, de uma certa maneira, a sociedade inteira aceite mais ou menos conscientemente os valores daquele. Mas nem sempre e esse o caso.
Toda a sociedade densa se decompõe em vários "conjuntos": o econômico, o político, o cultural, o social hierárquico. O econômico só se compreenderá em ligação com os outros "conjuntos", dispersando-se neles mas abrindo também suas portas para os vizinhos. Há ação e interação. Essa forma particular e parcial do econômico que e o capitalismo só se explicará plenamente à luz dessas vizinhanças e dessas intrusões; aí acabará por assumir o seu verdadeiro rosto.
Assim, o Estado moderno, que não fez o capitalismo mas o herdou, ora o favorece, ora o desfavorece; ora o deixa estender-se, ora lhe quebra as molas. O capitalismo só triunfa quando se identifica com o Estado, quando ele é o Estado.
Em sua primeira grande fase, nas cidades-Estados da Itália, em Veneza, em Gênova, em Florença, e a elite do dinheiro quem detém o poder. Na Holanda, no século XVII, a aristocracia dos Regentes governa no interesse e inclusive de acordo com as diretrizes traçadas pelos homens de negócios, negociantes e administradores de fundos. Na Inglaterra, a revolução de 1688 marca analogamente um advento dos negócios à holandesa. A França está atrasada em mais de um século: e com a revolução de julho de 1830 que a.burguesia comercial se instala, enfim, confortavelmente no governo.
Assim, o Estado é favorável ou hostil ao mundo do dinheiro segundo o seu próprio equilíbrio e a sua própria força de resistência. O mesmo pode ser dito no tocante à cultura e à religião. Em princípio, a religião, força tradicional, diz não às novidades do mercado, do dinheiro, da especulação, da usura. Mas há acomodações com a Igreja. Esta não deixa de dizer não mas acaba por dizer sim às exigências imperiosas do século.
Em poucas palavras, ela aceita um aggiornamento, ter-se-ia dito ontem um modernismo. Augustin Renaudet recorda que Santo Tomás de Aquino (1225-1274) tinha formulado o primeiro modernismo fadado a ter êxito. Mas se a religião e, portanto, a cultura, eliminou bastante cedo seus obstáculos, ela manteve, porém, uma forte oposição de principio, em especial no que se refere ao empréstimo a juros, condenado como usura.
Pôde-se mesmo sustentar, um pouco apressadamente, e verdade, que esses escrúpulos só foram suscitados pela Reforma e que está aí a razão profunda da ascensão capitalista dos países do Norte da Europa.
Para Max Weber, o capitalismo, no sentido moderno da palavra, teria sido nem mais nem menos uma criação do protestantismo ou, melhor, do puritanismo.
Todos os historiadores se opõem a essa tese sutil, embora não consigam desembaraçar-se dela de uma vez por todas; ela não cessa de ressurgir diante dos olhos deles. E, no entanto, e uma tese manifestamente falsa. Os países do Norte nada mais fizeram do que tomar o lugar ocupado por muito tempo e brilhantemente, antes deles, pelos velhos centros capitalistas do Mediterrâneo.
Os nórdicos nada inventaram, nem na técnica, nem na condução dos negócios. Amsterdam copiou Veneza, tal como Londres copiará Amsterdam, tal como Nova Iorque copiará Londres. O que está em jogo, de cada vez, e o deslocamento do centro de gravidade da economia mundial por razões econômicas, e que não envolvem a natureza própria ou secreta do capitalismo.
Esse deslizamento definitivo, no final do século XVI, do Mediterrâneo para os mares do Norte, e o triunfo de um país novo sobre um velho país. E é também uma vasta mudança de escala. A favor da nova supremacia do Atlântico, há uma ampliação da economia em geral, das trocas, das reservas monetárias e, uma vez mais, é o progresso vivo da economia de mercado que, fiel ao rendez-vous de Amsterdam, carregará em suas costas as construções ampliadas do capitalismo.
Finalmente, o erro de Max Weber parece-me derivar essencialmente, no começo, de uma exageração do papel do capitalismo como promotor do mundo moderno.
Mas o problema essencial não está aí. O verdadeiro destino do capitalismo jogou-se, com efeito, em face das hierarquias sociais.
Toda a sociedade evoluída admite várias hierarquias, digamos, várias escadas que permitem abandonar o andar térreo onde vegeta a massa popular de base – o Grundvolk de Werner Sombart: hierarquia religiosa, hierarquia política, hierarquia militar, diversas hierarquias do dinheiro. De uma para a outra, segundo os séculos e segundo os lugares, existem oposições, ou compromissos, ou alianças; por vezes, até há confusão.
No seculo XIII, em Roma, a hierarquia política e a hierarquia religiosa confundem-se, mas, em torno da cidade, a terra e os rebanhos criam uma classe de grandes senhores perigosos, enquanto que os banqueiros da Cúria – instalados em Siena – já estão em franca ascensão. Em Florença, no final do século XIV, a antiga nobreza feudal e a nova grande burguesia mercantil são apenas uma classe, formando a elite do dinheiro que também se apossa, logicamente, do poder político.
Em outros contextos sociais, pelo contrário, uma hierarquia política pode esmagar as outras: é o caso da China dos Ming e dos manchus. É também o caso, mas de um modo menos nítido e contínuo, da França monárquica do Ancien Régime, a qual só concede por largo tempo aos comerciantes, ainda que ricos, um papel sem prestígio, e empurra para a primeira linha a hierarquia decisiva da nobreza. Na França de Luís XIII, o caminho do poderio consiste em aproximar-se do rei e da corte. O primeiro passo da verdadeira carreira de Richelieu, titular do bispado miserável de Luçon, foi tornar-se o esmoler da rainha-mãe, Maria de Medici, o que o fez assim chegar à corte e introduzir-se no estreito círculo dos governantes.
Quantas as sociedades, tantos os caminhos para a ambição dos indivíduos. Tantos os tipos de êxitos. No Ocidente, embora não sejam raros os êxitos de indivíduos isolados, a história repete sem fim a mesma lição, a saber, que o sucesso individual deve quase sempre inscrever-se no ativo de famílias vigilantes, atentas, empenhadas em aumentar pouco a pouco sua fortuna e sua influência. A ambição delas não exclui a paciência, manifesta-se a longo prazo. Deve-se, então, cantar as glórias e os méritos das "longas" famílias, das linhagens? É colocar em destaque, para o Ocidente, o que chamamos, a traços largos, usando um termo que se impôs tardiamente, a história da burguesia, portadora do processo capitalista, criadora ou utilizadora da hierarquia sólida que será a espinha dorsal do capitalismo. Este, com efeito, para estabelecer sua fortuna e seu poderio, apóia-se sucessiva ou simultaneamente sobre o comércio, sobre a usura, sobre o comércio a distância, sobre o "ofício" administrativo e sobre a terra, valor seguro e que além disso, e mais do que se pensa, confere um evidente prestígio em face da própria sociedade.
Se estivermos atentos a essas longas cadeias familiares, à lenta acumulação de patrimônios e honrarias, a passagem do regime feudal ao regime capitalista, na Europa, torna-se quase compreensível. O regime feudal é, em benefício de famílias senhoriais, uma forma duradoura de partilha da riqueza fundiária, essa riqueza de base – ou seja, uma ordem estável em sua textura. A "burguesia", ao longo dos séculos, terá parasitado essa classe privilegiada, vivendo perto dela, contra ela, tirando proveito de seus erros, de seu luxo, de sua ociosidade, de sua imprevidência, para se apoderar de seus bens – com freqüência, graças à usura –, introduzir-se finalmente em suas fileiras e, depois, aí se perder.
Mas outros burgueses estão a postos para reencetar o assalto, para recomeçar a mesma luta. Em suma, parasitismo de longa duração: a burguesia não acaba de destruir a classe dominante para alimentar-se dela. Mas sua escalada foi lenta, paciente, a ambição projetada sem fim nos filhos e netos. E assim sucessivamente.
Uma sociedade desse tipo, derivando de uma sociedade feudal, ela própria ainda meio feudal, e uma sociedade onde a propriedade, os privilégios sociais estão relativamente protegidos, onde as famílias podem desfrutar deles numa relativa tranqüilidade, sendo a propriedade, por assim dizer, sacrossanta, onde cada um permanece em seu lugar. Ora, são imprescindíveis essas águas calmas ou relativamente calmas para que a acumulação se faça, para que cresçam e se mantenham as linhagens, para que, com a ajuda da economia monetária, o capitalismo finalmente surja. Na ocorrência, ele destruiu certos baluartes da alta sociedade, mas para reconstruir outros em seu proveito, tão sólidos e tão duradouros.
Essas longas gestações de fortunas familiares, culminando um belo dia em êxitos espetaculares, nos são a tal ponto familiares, no passado ou no tempo presente, que fica difícil nos darmos conta de que se trata, de fato, de uma característica essencial das sociedades do Ocidente.
Na verdade, só nos apercebemos dela quando nos expatriamos, olhando o espetáculo diferente que oferecem as sociedades fora da Europa. Nessas sociedades, aquilo a que chamamos, ou podemos chamar, o capitalismo defronta-se, em geral, com obstáculos sociais pouco fáceis ou impossíveis de transpor. São esses obstáculos que nos colocam, por contraste, no caminho de uma explicação geral.
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